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ArtigosMito da Raça Açoriana

09 de outubro de 2024

Moacyr Flores

(Membro do CIPEL)

O mito da raça açoriana surgiu de deduções teóricas e preconceituosas de intelectuais, baseados no cientificismo de época ou nos princípios teóricos do positivismo. Alcides Lima, Assis Brasil, Cezimbra Jacques, Alfredo Varela, João Borges Fortes e Guilhermino César criaram e cultivaram o mito açoriano, “raça” destinada a formar uma “nova raça” no Rio Grande do Sul, com altos princípios morais de ordem, amor pela liberdade, culto à honradez, caráter forte, destemor e respeito pela verdade. Segundo estes autores, a baixa densidade de mestiçagem era explicada como horror que o branco tinha ao índio e ao negro.

Alcides Lima comenta na História Popular do Rio Grande, 1882, que as qualidades morais, o caráter alegre e expansivo dos açorianos passou aos rio-grandenses. Entretanto, na literatura publicada nos Açores, os personagens são caracterizados como tristes e com certa morbidez gerada pela estrutura social do morgadio, pelas terras escassas, pelos ventos violentos, por famílias conservadoras e por uma religiosidade popular opressora. Alcides Lima conclui que o “caráter público do povo açoriano é geralmente inclinado às expansões da liberdade e da independência por antipatia às instituições monárquicas, que são opressoras” (Lima, p. 49-53).

Esta conclusão deve ser considerada como parte da propaganda republicana do autor e não como característica açorita, pois é dos Açores que Dom Pedro I arregimentou tropas para lutar em Portugal pela manutenção do trono de D. Maria da Glória, sua filha e rainha de Portugal.

Joaquim Francisco de Assis Brasil, em História da República Rio-grandense, também publicada em 1882, com objetivos de promover a campanha republicana, analisou a formação da população do Rio Grande do Sul a partir de portugueses, açorianos, paulistas, mineiros e espanhóis, considerando que os elementos africanos e indígenas exerceram influência quase nula, pela natural repugnância do branco por essas raças (Assis Brasil, p. 20-21).

Os historiadores positivistas também consideravam a raça e o meio geográfico como fatores determinantes no encadeamento dos fatos históricos, pois concebiam o herói movimentando a história. Alfredo Varela, no primeiro volume da obra Revoluções Cisplatinas, analisando as causas predisponentes, classifica os açorianos como laboriosos, semelhantes aos portugueses de antanho, depositários de maior quantidade das tradições da linguagem, poesia popular, usos e costumes da mãe pátria. As mulheres eram geralmente altas, elegantes e formosas. A raça açoriana odiava a vida militar, mas aqui no Rio Grande do Sul em contato com o novo meio físico e o clima, em poucos anos mudou para o tipo originalíssimo: a população rio-grandense tão diferente até mesmo do Brasil. Assim teríamos aqui uma raça privilegiada, a partir do pesado e conservador ilhéu que desabrochou em entusiasmo guerreiro, em plena primavera de evolução, graças à ação do meio físico (Varela, I vol., p. 56).

Alfredo Varela, apoiado em depoimento de Saint-Hilaire, afirma que entre os espanhóis havia mais mestiços que entre os portugueses, pelo elevado número de criollos. Este engano foi gerado pela tradução errada da palavra criollo, em espanhol significando o branco nascido na América, por crioulo, negro nascido no Brasil.

Na construção do pensamento histórico rio-grandense, destaca-se João Borges Fortes que em 1932 publicou Casais, reeditado em 1978 com o título de Os Casais Açorianos. Defendendo uma teoria racista, alienada do contexto histórico, Borges Fortes parte do princípio que o governo português não poderia utilizar os índios animalizados e nem os negros broncos para conquistar e colonizar o sul do Brasil. Em palavras textuais do historiador positivista: “fez a escolha de colonizadores selecionados pelos seus antecedentes morais e étnicos, seleção que se procurou tornar ainda mais perfeita quando se exigiu que os homens não fossem maiores de quarenta anos e as mulheres não excedessem os trinta de idade” (Borges Fortes, 1978, p. 29).

Segundo o autor, predestinados eram os açorianos, raça límpida em sua origem, superior à do português do continente por seus aspectos físicos, inteligência e laboriosidade. Mais adiante o historiador se contradiz ao anunciar que os açoritas vêm para continuar a obra civilizadora lusitana, imbuídos do maior patriotismo. A teoria racial impediu que Borges Fortes enxergasse a realidade, sua análise é contraditória com os próprios documentos que ele reproduz, onde consta a reclamação do governador Escudero sobre a remessa de velhos, decrépitos e aleijados, sem nenhum préstimo. Seguindo a teoria da influência do meio, argumenta que o lavrador foi mudado em estancieiro, o pastor em guerreiro, o sedentário em aventureiro na Campanha semideserta do Rio Grande do Sul.

Defendendo a ideia de que a evolução da civilização está na dependência da raça branca, Borges Fortes na obra Rio Grande de São Pedro, editada em 1941, caracteriza os filhos dos pioneiros como os primeiros da raça continentina, que graças à corrente açoriana isentou os rio-grandenses do cruzamento com os elementos inferiores do indígena e do negro, permitindo assim a criação de uma raça sadia física e moralmente.

As ilhas dos Açores estavam superpovoadas, a produção de alimentos agrícolas era insuficiente, complementada com a pesca e com a caça da baleia. As ilhas começaram a ser povoadas desde o tempo do infante D. Henrique, por portugueses, flamengos. mouriscos, judeus e outros. (Ferreira Filho, 1965, p. 32).

Guilhermino César vai mais longe, considera que os indígenas, os castelhanos vagos, o gaúcho, os milicianos de outras capitanias e os aventureiros abeberaram-se na cultura açoriana, adquirindo hábitos e fixidez. Afirma que foi o açoriano que “deu colorido específico ao municipalismo rio-grandense, à vida do burgo, às festas religiosas e à arquitetura bem portuguesa de nossas primeiras construções urbanas” (César, 1970, p. 133-134).

Guilhermino César defende a teoria positivista do gaúcho civilizado, mantido em ordem pelo núcleo urbano, oculta que o municipalismo brasileiro tem origens em Portugal, iniciando com a Vila de São Vicente, fundada por Martim Afonso de Sousa, em 1532, e o municipalismo rio-grandense não difere do restante do Brasil e não tem nenhum colorido açoriano, pois estava especificado e determinado pelas Ordenações do Reino.

As festas do Divino Espírito Santo, do período natalino e as juninas são semelhantes às de Portugal. As chamadas casas de arquitetura açoriana no Rio Grande do Sul são semelhantes às casas populares encontradas em Sintra, Cascais, Óbidos e arredores de Lisboa.

Analisando as origens dos habitantes de Viamão, através dos registros de batizados, verifica-se que é uma população em marcha, pois os pais, na maioria das vezes são de lugares diferentes, conforme o exemplo:

Batismo no. 26 – ANA – 17.7.1760. Filha do cabo de esquadra de Dragões Francisco José Corrêa e de Maria Antônia Rodrigues, ele natural e batizado na Igreja da Candelária do Rio de Janeiro, ela natural da praça da Colônia do Sacramento. Neta paterna de Martinho Gonçalves Rebelo Pinto, natural de Lisboa e de Maria Josefa de Jesus, natural do Rio de Janeiro; neta materna de Antônio Rodrigues Sardinha, natural do Rio de Janeiro e de Antônia Rodrigues, natural da ilha das Canárias, dos casais que vieram povoar Montevidéu a primeira vez e agora moradores na praça do Rio Grande de S. Pedro.

Este exemplo segue a maioria dos assentamentos. Muitas famílias desaparecem dos assentamentos, dando aos Campos de Viamão o apelido de Terra do Sumiço. As concessões de sesmarias nos atuais municípios de Canguçu e Piratini, atraíam a população que acompanhava a fronteira em marcha pelo território espanhol. Há moradores de Viamão que venderam suas terras quando chegavam novos moradores e buscavam novas áreas próximas à fronteira, como se escapassem do processo civilizatório.

Com os dados do livro de batismo de 1759-69, da freguesia de Nossa da Conceição de Viamão, incluindo os filhos de índios, escravos, enjeitados e pessoas que não sabiam informar suas origens, elaboramos o quadro com a origem dos pais e das mães:

Origem

Mulher

Homem

Açorianos

306

275

Brasileiros

255

172

Portugueses

  19

119

Espanhóis

    5

  19

Total

585

585

Há maior número de mulheres açorianas, 306 contra 279 de outros locais, pelo fato de terem vindo com as famílias, denominadas de casais. Entre os açorianos predominam os da ilha Terceira, com 92 mulheres e 89 homens. Depois as brasileiras de várias capitanias com 255 mulheres, a maioria casadas com tropeiros e militares. Por fim, as mulheres naturais de Portugal totalizam apenas 19, que acompanharam seus maridos. A grande parte dos 119 portugueses veio sem mulheres e termina casando ou se juntando com mulheres onde prestavam serviço militar.

Segundo levantamento do padre Ruben Neis nos livros de batismo, casamento e óbitos, dos 626 casais vindos para os Campos de Viamão, só oito permaneceram no local e 14 em Porto Alegre, depois de 1784. Vários fatores contribuíram para esta situação: a pequena quantidade de ilhéus que se fixaram em curto período; as similitudes dos traços culturais açoritas com os dos portugueses do continente, como o culto do Divino Espírito Santo e o tipo de arquitetura popular; e da grande corrente de brasileiros de outras capitanias que povoaram o Rio Grande do Sul.

Diante das dificuldades e do abandono das autoridades, que não concederam ajuda de custo, a maioria dos açorianos desertou para Montevideo. (Ferreira Filho, 1965, p. 33).

O mito açoriano criado pelos intelectuais rio-grandenses em fins do século passado e início deste, ocultou sob o véu diáfano da fantasia a verdadeira contribuição cultural açoriana, que se esvaiu ao longo do tempo antes de ser corretamente registrada em pesquisa.

A construção da memória açoriana apropria-se de fatos culturais de cristãos-novos como sendo típicos da cultura açorita. No meio dos migrantes açorianos vieram cristãos-novos, que nas ilhas dos Açores adotaram a religião católica, a fim de escaparem da implacável Inquisição. Os que migraram para Viamão, Rio Grande, São José do Taquari, Rio Pardo e Mostardas, continuaram como católicos e alguns trocaram de nome, como os Ultra para Dutra, os Van Der Hagen para Silveira, outros conservaram os nomes que trocaram em Portugal, como os Mendes, os Dornelles, os Borges. Apesar de não praticarem mais a religião dos hebreus, conservaram alguns costumes, hoje considerados como folclore açoriano, como lavar o morto; dar uma roupa do defunto para um pobre; acompanhar o enterro de chapéu na cabeça como fazem os homens da comunidade de Osório; festejar o Ball Masqué que na realidade é resquício do Purim, a festa da rainha Ester; acender uma luz na hora da Ave Maria, quando surge a primeira estrela; não apontar para a estrela porque pode ficar com verruga no dedo; não comer carne de porco porque faz mal; não comer lebre e nem coelho que dá tuberculose; não misturar leite com outros alimentos; varrer a casa da porta de entrada para a dos fundos. Estes preceitos estão no Talmude. O interessante é que os habitantes da área rural de Porto Alegre, Viamão, Gravataí e Osório, conforme pesquisa que realizei, não sabem se são descendentes de açorianos ou de cristãos-novos.

O mito açoriano, criado pelos intelectuais, continua sendo transmitido em nossas escolas, sem os professores perceberem que a contribuição açoriana se diluiu num oceano de outras contribuições étnicas. Esqueceram que os Campos de Viamão eram conhecidos como Terra do Sumiço, pois grande parte da população tornava a migrar por causa do terreno arenoso, banhados e formigas e. principalmente, pela Câmara Municipal transferida para a nova freguesia da igreja matriz de Nossa Senhora Madre de Deus de Porto Alegre.

BIBLIOGRAFIA

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NEIS, Ruben. Guarda Velha de Viamão. Porto Alegre, EST/ Sulina, 1975.

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VARELA, Alfredo. Revoluções Cisplatinas. Porto: Chardron, 1915.

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