ARTIGO
ArtigosEu vos abraço, milhões: o derradeiro romance de Moacyr Scliar
09 de outubro de 2024
Rafael Bán Jacobsen
(Membro do CIPEL)
Com a morte do escritor Moacyr Scliar, em fevereiro de 2011, abriu-se um tremendo vazio no panorama das letras brasileiras; todavia, a falta que esse prosador fará à literatura gaúcha é ainda mais dramática. De fato, o prolífico autor do Bom Fim ocupava, já há vários anos, a simbólica posição de locomotiva do beletrismo sul-riograndense. Como afirmou o escritor José Antônio Silva, em seu recente artigo “Scliar e a sucessão literária”:
“Porto Alegre e o Rio Grande, creio eu, têm dimensão para suportar (em todos os sentidos) um grande nome da literatura por vez – ideia que me vem à mente agora com a morte de Moacyr Scliar. (...) O fenômeno de um grande nome por época, no sistema literário, talvez seja típico de culturas menos cosmopolitas. (...) Fato é que a morte de Scliar, como toda a morte, deixa um vácuo. No caso dele, no cenário das letras.”
José Antônio Silva observa que, nas últimas décadas, três escritores alternaram-se como figura de proa de nossa literatura: Erico Verissimo, Mario Quintana e Scliar. Essas três figuras destacaram-se tanto porque foram capazes de personificar alguns atributos essenciais, raramente encontrados conjuntamente em outros autores: talento, reconhecimento crítico e, principalmente, forte empatia popular. Enquanto o Rio Grande do Sul se pergunta quem será o próximo escritor a ocupar a mesa de cabeceira de nosso festim das letras, fica em nossas mãos, quase como involuntário testamento literário, o último romance de Scliar: “Eu vos abraço, milhões”, lançado em 2010.
O livro tem a forma de uma longa carta na qual o protagonista Valdo conta episódios de sua vida para o neto que mora nos Estados Unidos. Filho de um capataz, nascido e criado em uma fazenda no interior do Rio Grande do Sul, Valdo destaca-se, desde criança, pela sagacidade, inteligência e olhar crítico sobre a realidade que o cerca. Valdo, ao ver o seu pai ser humilhado pelo dono da fazenda, começa a perceber que o mundo é repleto de injustiças e que a opressão sobre os menos favorecidos é o cerne e a mola propulsora das relações sociais, econômicas e políticas. Tal percepção consolida-se na mente de Valdo a partir do momento em que ele conhece o filho de sua professora na pequena escola local, um rapaz chamado Geninho e que é membro do Partido Comunista. Geninho passa a ser, para o adolescente Valdo, uma espécie de modelo e guia ideológico, além de grande amigo. Porém, a relação de camaradagem e afinidade intelectual entre eles dura pouco: Geninho perece, vitimado por um câncer avassalador, deixando com Valdo dois livros (o “Manifesto Comunista”, de Marx e Engels, e “O que fazer?”, de Lênin) e uma missão – rumar para o Rio de Janeiro, encontrar Astrojildo Pereira, presidente do “Partidão”, e, sob sua tutela e instrução, engajar-se na luta do proletariado contra a burguesia.
Para ingressar no Partido Comunista, Valdo abandona a família e segue para o Rio de Janeiro como passageiro clandestino em um trem; contudo, no conturbado contexto político dos estertores da República Velha, ele encontra a dura realidade, a qual vai de encontro às suas fantasias juvenis: de desencontro em desencontro, contatar Astrojildo Pereira revela-se tarefa impossível; aos poucos, travando conhecimento com membros do partido, transparece aos olhos de Valdo a desunião e as contradições intrínsecas ao movimento; de uma hora para outra, pressionado pela necessidade, ele próprio, ateu, se vê forçado a trabalhar na construção do monumento do Cristo Redentor.
São múltiplas as encruzilhadas com as quais Valdo se depara em sua jornada íntima de amadurecimento, e, diante de cada uma delas, a pergunta que naturalmente emerge é “o que fazer?”, o que transforma o título da obra de Lênin, citado também sempre em russo (“Chto delat?”), em uma espécie de refrão ao longo da narrativa. O outro refrão marcante é aquele que dá título à obra, “eu vos abraço, milhões”, que é uma citação da “Ode à alegria”, do poeta alemão Friedrich Schiller, utilizada por Beethoven em sua Nona Sinfonia, e que, segundo declarou o próprio Scliar “é o resumo perfeito da ideia de utopia, o desejo de abraçar a multidão”. Com efeito, o derradeiro romance de Scliar é quase um elogio às utopias, mas um elogio focado muito mais no que as utopias são capazes de fazer na vida de quem intimamente as possui do que em sua potencial força de transformação social. De fato, é animado pela utopia comunista que Valdo vai buscar seu lugar no mundo, vai aprender o peso das ambivalências humanas, vai descobrir que supostos heróis são apenas de carne e osso, vai encontrar a mulher que viverá ao seu lado para sempre e vai amadurecer enquanto homem, profissional e cidadão.
Em entrevista à jornalista Mona Dorf, o consagrado escritor mineiro Luiz Ruffato afirmou que existem os escritores que contam histórias e os escritores que escrevem histórias. Sem estabelecer qualquer julgamento de valor ou hierarquia entre esses dois tipos de autores, Ruffato explicou:
“Um bom autor é aquele que consegue um equilíbrio entre forma e conteúdo. Mas, em geral, alguns tendem a valorizar mais o conteúdo (o “o quê”) e outros mais a forma (o “como”). No primeiro caso, então, temos os escritores que contam uma história (como Jorge Amado e José Lins do Rego, por exemplo) e, no segundo, autores que escrevem uma história (como Machado de Assis e Guimarães Rosa, entre outros).”
Moacyr Scliar, sem dúvidas, pertencia à primeira categoria. Ele próprio se dizia “um contador de histórias”. Portanto, para o leitor que busca maior elaboração de linguagem, que deseja experimentar transcendente enlevo estético a cada página, que anseia por mergulhar vertiginosamente na psique das personagens, vislumbrando, assim, insuspeitadas filosofias e caleidoscópicos rasgos de compreensão acerca da condição humana e de outras questões metafísicas, Scliar não será um autor de cabeceira. Ele era, antes de mais nada, um escritor de estilo límpido, claro, escorreito, um criativo inventor de enredos, um escritor extremamente culto, capaz de conceber tramas envolventes, conduzidas por carismáticas personagens e, não raro, com marcante pano de fundo histórico – aliás, nesse quesito, Scliar ia além, como nos prova “Eu vos abraço, milhões”: em seus livros, os fatos e as personagens históricas não surgem apenas como adereço ou cenário; os elementos da realidade factual mesclam-se de maneira natural e indissociável com a urdidura ficcional, constituindo um amálgama vivo e pulsante.
Em “Eu vos abraço, milhões”, personagens reais como Machado de Assis, Euclides da Cunha, Astrojildo Pereira, Luís Carlos Prestes e Getúlio Vargas acenam com naturalidade nas entrelinhas, e a presença de cada um deles no enredo, transcendendo a mera citação, justifica-se ao longo livro através da repercussão dos ditos e feitos de cada um deles sobre a vida de Valdo e também através do estabelecimento de inesperadas conexões entre eles. É por meio das ressonâncias no cotidiano e, sobretudo, na mente de Valdo que nós, leitores, somos postos em contato com eventos como a industrialização do Brasil, a quebra da bolsa de valores de Nova Iorque e a Revolução de 30, que leva os gaúchos, conterrâneos de Valdo, a “amarrarem seus cavalos no obelisco”.
Outro ponto alto da prosa de Scliar é seu humor, o qual, muitas vezes, surge como um “rir de si mesmo”, pois Scliar lança a sua saudável irreverência sobre diversos grupos humanos aos quais pertenceu: esquerdistas, médicos, judeus, gaúchos. Exemplo disso é a passagem em que Joaquim, chefe de Valdo nas obras do Cristo Redentor, ao saber da chegada de Getúlio à capital federal, comenta:
“– Pelo jeito vocês, gaúchos, querem tomar conta do Brasil. Têm direito. Ainal essa coisa de ficar lá na ponta do país empurrando a linha de Tordesilhas, brigando com castelhanos e criando boi acaba cansando, não é mesmo? Bom é o Rio de Janeiro, a Avenida Central, a praia...”
E é com essa mesma irreverência que Valdo, paulatinamente, vai esfacelando seus ícones para formar seu próprio caráter, coisa que, no fundo, também consiste em um processo de autoironia. Veja-se, por exemplo, a passagem em que ele descobre que Astrojildo Pereira se afastara do Partido Comunista:
“... para sobreviver, tornara-se comerciante de frutas: vendia bananas (...). Atividade inusitada para um antigo militante, tão inusitada que Manuel Bandeira escrevera um poema a respeito. (...) ‘Bananeiras/ Astrojildo esbofa-se/ plantai-as às centenas, às mil:/ musa paradisíaca, a única/ que dá dinheiro neste Brasil’. (...) Bananas! Podia haver coisa mais ridícula? (...) Isso, claro, nada tinha a ver com a humildade do produto vendido. Refugiado na Argentina, depois da odisseia da Coluna, Prestes importara cabos de vassoura, igualmente humildes; mas detentores, a meu ver, de uma certa dignidade, e até de um potencial revolucionário. Na hipótese de um levante da classe operária, cabos de vassoura poderiam servir de armas, rachando crânios burgueses, liquidando inimigos (...). Agora – bananas? Como golpear alguém com uma banana, musa paradisíaca?”
A trajetória do protagonista Valdo é, em certa medida, a do próprio Partido Comunista, partindo das aspirações que produzem os mais diversos devaneios e culminando nas armadilhas do autoritarismo e das ditaduras. Ver seus sonhos irem a pique nas águas lamacentas do regime criado por Stalin é um avassalador golpe que Valdo e seus “camaradas” precisam assimilar, ou seja, imprensado entre utopia e distopia, cada um precisa encontrar o seu próprio caminho, a sua própria forma de enxergar e dialogar com o mundo.
O último romance de Moacyr Scliar traz, portanto, todos os elementos que o consagraram como um dos mais reconhecidos escritores brasileiros de todos os tempos. Um livro para ser lido em um só fôlego.
Biliografia
DORF, MONA. Autores e ideias. São Paulo: Editora Benvirá, 2010.
SCLIAR, MOACYR. Eu vos abraço, milhões. São Paulo: Cia. Das Letras, 2010.
SILVA, JOSÉ ANTÔNIO. Artigo Scliar e a sucessão literária. Disponível em: http://www.artistasgauchos.com.br/portal/?cid=498